Há algum tempo encontrei um gráfico do Political Compass
que procura comparar a opinião política dos compositores. Para tanto,
eles construíram um método onde a diversidade de posições ideológicas
não fica só na tradicional distinção entre esquerda e
direita, acrescentando para tanto a variável se os compositores são mais
autoritários ou o inverso disso, mais libertários.
Ainda que abusando do anacronismo,
trata-se de um exercício que acho divertido por si só. Segundo eles
informam, essa demonstração foi inspirada por um artigo de abril de 1997
na BBC Music Magazine – peculiarmente intitulado como “Would
Beethoven vote Labour? Political analyst Vernon Bogdanor plays a
guessing game: how would past composers vote in the British election if
they were alive today”.
Diversos compositores ficaram de fora,
uma vez que é praticamente impossível saber onde enquadrá-los – Bach,
Schubert e Mendelssohn, por exemplo –, e não há detalhes de como os
outros que aparecem foram posicionados; aparentemente, foi a soma de
algum conhecimento biográfico com a intuição mesmo. De todo modo, nem
creio que o gráfico seja muito imaginativo, correspondendo a algo
próximo da opinião deles, porém algumas rápidas considerações merecem
ser feitas. Ao contrário dos artistas de outras áreas, um compositor
pode esconder muito bem suas preferências no seu trabalho e, se ainda
assim, há insistência em conhecer as intenções obscuras dos autores é
porque vivemos numa era que politiza absolutamente todos os espaços da
vida, que exige algum compromisso social da estética.
Assim, é inevitável que exista uma
expectativa velada dos admiradores para que um artista tenha algo a
dizer num campo em que, talvez, ele não saiba nada ou esteja apenas indo
atrás das melhores oportunidades para seu trabalho. Afinal, a grande
maioria dos bons compositores era de gente comum, ingênua em outras
questões que não musicais – e Mahler foi aqui uma rara exceção. Desse
modo, poucos foram efetivamente engajados, como um Luigi Nono, por
exemplo, que era capaz de batizar um opus como Non Consumiamo Marx
(1969). Mas aqui entramos num tema cada vez maior, merecedor de post no
futuro: com a modernidade, é nítido que o papel do compositor se amplia
de maneira irreversível, abandonando uma posição mais próxima à do
artesão até se arrogar porta-voz de uma posição estética e política.
Veja-se, por exemplo, a posição de
Mozart, que denuncia o anacronismo da brincadeira. Muito provavelmente o
austríaco estava mesmo à esquerda de seu tempo, apesar de não haver
esquerda ainda, mas enciclopedistas, maçons e uma imaginação social que
recusava cada vez mais o Antigo Regime. Contudo, isso não significa que
ele tenha sido um homem politizado que escolheu As Bodas de Fígaro de Beaumachais
mais para afrontar a classe dominante do que pelo seu gosto por
histórias com personagens populares. Beethoven e Wagner futuramente vão
se permitir censurar diversas vulgaridades dos libretos de algumas das
melhores óperas de Mozart, que devia parecer a eles apenas um burguês
alienado.
Napoleão em seu trono imperial (1806), de Ingres. |
Evidentemente, conhecer uma opção
política desagradável do compositor não impede de apreciar a música,
mesmo quando ela tem algum propósito óbvio nesse sentido. Beethoven, por
exemplo, não via muitos problemas em admirar o Réquiem em Dó Menor
(1816) de Cherubini, elegia contrarrevolucionária em homenagem a Luis
XVI e Maria Antonieta. Aliás, a biografia do compositor alemão nos
lembra que são bem poucas as opções políticas que ao longo do tempo não
se revelam desagradáveis. Segundo a história exaustivamente repetida,
Beethoven quase comprometeu a dedicatória de um de seus maiores
trabalhos por admiração a Bonaparte, tendo desistido imediatamente ao
saber da autocoroação deste. Contudo, não cumpre exagerar seu idealismo.
Segundo informa seu biógrafo, Maynard Solomon, o compositor de Fidelio
se mostra um caso exemplar da humanidade banal do artista – ou
complexidade, se preferirem –, se mostrando crítico da conduta de
Napoleão muito antes daquele evento e dedicando suas obras sem muito
critério que não o econômico, fosse para herdeiros do Iluminismo ou para
a nobreza. Seja como agradecimento ou oferecimento em busca de
patrocínio, as dedicatórias tinham os objetivos mais mundanos possíveis.
Não foi diferente com a Eroica: fosse título ou dedicatória,
Bonaparte só teria seu nome ali para ajudar seu compositor a entrar na
sociedade parisiense, plano que não aconteceu. Ao fim, Beethoven
preferiu mesmo se fixar em Viena, optando por outros projetos e se
tornou abertamente antibonapartista.
Outro caso revelador de oportunismo
político na música é o de Wagner, localizado no gráfico num extremo
infeliz, provavelmente menos pela soma desordenada de afirmações
políticas do que pelo que foi aproveitado em sua obra para fins
pérfidos. Não quero entrar na consideração se antissemitismo é atributo
mais presente à direita ou à esquerda, mas o fato é que muitas das
digressões antissemitas de Wagner identificavam os judeus ao capitalismo
que ele tanto desprezava. Tendo participado de barricadas para lutar
contra a aristocracia ainda predominante na Alemanha, Wagner não viu
problemas em posteriormente se aliar à nobreza quando esta lhe
possibilitou Bayreuth e até o fim da vida foi extremamente eclético
quanto suas convicções intelectuais e políticas – mistura confusa, e até
sedutora para alguns, de budismo socialista com uma espécie de
nacionalismo mítico. Enfim, sua biografia resume um dos grandes anseios
do século XIX: depois de negar tudo, a vontade de se devotar a uma
utopia que imprimisse sentido tanto para a vida quanto para a sociedade.
E o nacionalismo, diga-se, mobilizou a
música mais do que qualquer outra preferência política, uma vez que
percorreu o horizonte de uma parcela considerável de compositores. De
Chopin a Bartók, as décadas de ascensão de Estados nacionais geraram
resultados díspares no uso do folclore. Nacionalismo musical se tornou
algo tão onipresente que seria exagero enxergar exclusivamente política
nessas composições.
Kennedy e os Stravinsky |
Ironicamente, Wagner não está ali muito distante de Stravinsky, o qual queria distância da música do alemão. Praticamente um símbolo da Rússia czarista, o compositor de Agon
(1957) não era nada revolucionário em se tratando de política,
detestando igualmente o comunismo, que o impeliu ao exílio, e o
liberalismo – ou, em suma, qualquer regime democrático, chegando mesmo a
simpatizar com Mussolini nos anos 30. Monarquista, sem dúvida, porém
sabia separar as coisas e não teve problemas em conhecer Kennedy – para
quem compôs a Elegy – ou mesmo Krushev, em sua única visita à União Soviética em 1962.
Por falar em URSS, não se pode dizer que
Prokofiev teve muitas opções no lugar que ocupa. Tendo falecido no
mesmo dia que Stalin, e garantindo assim um enterro bastante discreto
para si, o autor de Alexander Nevsky (1938) chegou a ter sua
esposa presa por “espionagem” em 1948. Já Shostakovitch, ao que tudo
indica comunista convicto, aparece um pouco mais ao centro,
provavelmente pelas diatribes que teve de suportar até o fim da vida com
a censura oficial, o que o debilitava psicologicamente de modo
considerável, sendo obrigado a alternar peças medíocres com
seus reprováveis desvios burgueses . Em suma, dois gênios amordaçados
por um regime brutal.
Por último, merecem ser destacadas duas
ausências importantes no gráfico: Verdi e Janacék. O primeiro, que
chegou a ser eleito deputado e indicado como senador pelo rei Vitor
Emanuel II, e é frequentemente tido como um nacionalista liberal – ao
que tudo indica menos por ideologia, e mais por temperamento –, teve um
papel bastante digno e bem conhecido durante o Risorgimento. Já o
segundo era dono de um nacionalismo rígido, do tipo que proibia a esposa
de falar alemão em casa, e teve entre suas melhores composições a
sonata para piano 1. X. 1905, em memória do trabalhador tcheco
assassinado numa manifestação na Universidade de Brno, um belo libelo
contra a autoridade austro-húngara. Provavelmente, uma das músicas de
teor político mais bonitas já feitas:
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