segunda-feira, 18 de junho de 2012

Em quem os compositores votavam? Algumas notas sobre músicos e política

 


Há algum tempo encontrei um gráfico do Political Compass que procura comparar a opinião política dos compositores. Para tanto, eles construíram um método onde a diversidade de posições ideológicas não fica só na tradicional distinção entre esquerda e direita, acrescentando para tanto a variável se os compositores são mais autoritários ou o inverso disso, mais libertários.

Ainda que abusando do anacronismo, trata-se de um exercício que acho divertido por si só. Segundo eles informam, essa demonstração foi inspirada por um artigo de abril de 1997 na BBC Music Magazine – peculiarmente intitulado como “Would Beethoven vote Labour? Political analyst Vernon Bogdanor plays a guessing game: how would past composers vote in the British election if they were alive today”.


Diversos compositores ficaram de fora, uma vez que é praticamente impossível saber onde enquadrá-los – Bach, Schubert e Mendelssohn, por exemplo –, e não há detalhes de como os outros que aparecem foram posicionados; aparentemente, foi a soma de algum conhecimento biográfico com a intuição mesmo. De todo modo, nem creio que o gráfico seja muito imaginativo, correspondendo a algo próximo da opinião deles, porém algumas rápidas considerações merecem ser feitas. Ao contrário dos artistas de outras áreas, um compositor pode esconder muito bem suas preferências no seu trabalho e, se ainda assim, há insistência em conhecer as intenções obscuras dos autores é porque vivemos numa era que politiza absolutamente todos os espaços da vida, que exige algum compromisso social da estética.

Assim, é inevitável que exista uma expectativa velada dos admiradores para que um artista tenha algo a dizer num campo em que, talvez, ele não saiba nada ou esteja apenas indo atrás das melhores oportunidades para seu trabalho. Afinal, a grande maioria dos bons compositores era de gente comum, ingênua em outras questões que não musicais – e Mahler foi aqui uma rara exceção. Desse modo, poucos foram efetivamente engajados, como um Luigi Nono, por exemplo, que era capaz de batizar um opus como Non Consumiamo Marx (1969). Mas aqui entramos num tema cada vez maior, merecedor de post no futuro: com a modernidade, é nítido que o papel do compositor se amplia de maneira irreversível, abandonando uma posição mais próxima à do artesão até se arrogar porta-voz de uma posição estética e política.

Veja-se, por exemplo, a posição de Mozart, que denuncia o anacronismo da brincadeira. Muito provavelmente o austríaco estava mesmo à esquerda de seu tempo, apesar de não haver esquerda ainda, mas enciclopedistas, maçons e uma imaginação social que recusava cada vez mais o Antigo Regime. Contudo, isso não significa que ele tenha sido um homem politizado que escolheu As Bodas de Fígaro de Beaumachais mais para afrontar a classe dominante do que pelo seu gosto por histórias com personagens populares. Beethoven e Wagner futuramente vão se permitir censurar diversas vulgaridades dos libretos de algumas das melhores óperas de Mozart, que devia parecer a eles apenas um burguês alienado.

Napoleão em seu trono imperial
(1806), de Ingres.
Evidentemente, conhecer uma opção política desagradável do compositor não impede de apreciar a música, mesmo quando ela tem algum propósito óbvio nesse sentido. Beethoven, por exemplo, não via muitos problemas em admirar o Réquiem em Dó Menor (1816) de Cherubini, elegia contrarrevolucionária em homenagem a Luis XVI e Maria Antonieta. Aliás, a biografia do compositor alemão nos lembra que são bem poucas as opções políticas que ao longo do tempo não se revelam desagradáveis. Segundo a história exaustivamente repetida, Beethoven quase comprometeu a dedicatória de um de seus maiores trabalhos por admiração a Bonaparte, tendo desistido imediatamente ao saber da autocoroação deste. Contudo, não cumpre exagerar seu idealismo. Segundo informa seu biógrafo, Maynard Solomon, o compositor de Fidelio se mostra um caso exemplar da humanidade banal do artista – ou complexidade, se preferirem –, se mostrando crítico da conduta de Napoleão muito antes daquele evento e dedicando suas obras sem muito critério que não o econômico, fosse para herdeiros do Iluminismo ou para a nobreza. Seja como agradecimento ou oferecimento em busca de patrocínio, as dedicatórias tinham os objetivos mais mundanos possíveis. Não foi diferente com a Eroica: fosse título ou dedicatória, Bonaparte só teria seu nome ali para ajudar seu compositor a entrar na sociedade parisiense, plano que não aconteceu. Ao fim, Beethoven preferiu mesmo se fixar em Viena, optando por outros projetos e se tornou abertamente antibonapartista.

Outro caso revelador de oportunismo político na música é o de Wagner, localizado no gráfico num extremo infeliz, provavelmente menos pela soma desordenada de afirmações políticas do que pelo que foi aproveitado em sua obra para fins pérfidos. Não quero entrar na consideração se antissemitismo é atributo mais presente à direita ou à esquerda, mas o fato é que muitas das digressões antissemitas de Wagner identificavam os judeus ao capitalismo que ele tanto desprezava. Tendo participado de barricadas para lutar contra a aristocracia ainda predominante na Alemanha, Wagner não viu problemas em posteriormente se aliar à nobreza quando esta lhe possibilitou Bayreuth e até o fim da vida foi extremamente eclético quanto suas convicções intelectuais e políticas – mistura confusa, e até sedutora para alguns, de budismo socialista com uma espécie de nacionalismo mítico. Enfim, sua biografia resume um dos grandes anseios do século XIX: depois de negar tudo, a vontade de se devotar a uma utopia que imprimisse sentido tanto para a vida quanto para a sociedade.

E o nacionalismo, diga-se, mobilizou a música mais do que qualquer outra preferência política, uma vez que percorreu o horizonte de uma parcela considerável de compositores. De Chopin a Bartók, as décadas de ascensão de Estados nacionais geraram resultados díspares no uso do folclore. Nacionalismo musical se tornou algo tão onipresente que seria exagero enxergar exclusivamente política nessas composições.

Kennedy e os Stravinsky
Ironicamente, Wagner não está ali muito distante de Stravinsky, o qual queria distância da música do alemão. Praticamente um símbolo da Rússia czarista, o compositor de Agon (1957) não era nada revolucionário em se tratando de política, detestando igualmente o comunismo, que o impeliu ao exílio, e o liberalismo – ou, em suma, qualquer regime democrático, chegando mesmo a simpatizar com Mussolini nos anos 30. Monarquista, sem dúvida, porém sabia separar as coisas e não teve problemas em conhecer Kennedy – para quem compôs a Elegy – ou mesmo Krushev, em sua única visita à União Soviética em 1962.

Por falar em URSS, não se pode dizer que Prokofiev teve muitas opções no lugar que ocupa. Tendo falecido no mesmo dia que Stalin, e garantindo assim um enterro bastante discreto para si, o autor de Alexander Nevsky (1938) chegou a ter sua esposa presa por “espionagem” em 1948. Já Shostakovitch, ao que tudo indica comunista convicto, aparece um pouco mais ao centro, provavelmente pelas diatribes que teve de suportar até o fim da vida com a censura oficial, o que o debilitava psicologicamente de modo considerável, sendo obrigado a alternar peças medíocres com seus reprováveis desvios burgueses . Em suma, dois gênios amordaçados por um regime brutal.

Por último, merecem ser destacadas duas ausências importantes no gráfico: Verdi e Janacék. O primeiro, que chegou a ser eleito deputado e indicado como senador pelo rei Vitor Emanuel II, e é frequentemente tido como um nacionalista liberal – ao que tudo indica menos por ideologia, e mais por temperamento –, teve um papel bastante digno e bem conhecido durante o Risorgimento. Já o segundo era dono de um nacionalismo rígido, do tipo que proibia a esposa de falar alemão em casa, e teve entre suas melhores composições a sonata para piano 1. X. 1905, em memória do trabalhador tcheco assassinado numa manifestação na Universidade de Brno, um belo libelo contra a autoridade austro-húngara. Provavelmente, uma das músicas de teor político mais bonitas já feitas:


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